05 junho 2016

EM DEMANDA DA SERENIDADE ESQUECIDA



Jesus não tinha biblioteca... Alguém algum dia fez esse comentário como que desse modo justificasse uma desvalorização dos livros enquanto fonte de enriquecimento pessoal. E, na verdade, os livros são apenas um meio, cuja valoração é muito variável, e podem ser um fim, mas nessa qualidade, ficam desvirtuados, fora da sua real valia, eles fizeram-se para ser lidos, estudados, criticados, como ensinamento, como reflexão, e não como mera colecção. Comprar livros a metro pode ser interessantíssimo para os livreiros e para ocupar estante vazia, mas aí o fim é discutível, também se podem encher estantes de objectos artísticos, de colecções de outros objectos, de coisas raras, de preciosidades  maravilhosas .

Eu desde muito cedo fui atraído para a leitura. Lia imenso, sempre que podia e muitas vezes no segredo da calada da noite. Cheguei a interromper a leitura de um livro quando chegada a hora de levantar e em breve novo dia começava para a família.

Curiosamente o meu interesse mantinha-se na leitura, e na minha adolescência devorava livros. Lia-os com uma sofreguidão que só encontrava termo quando o livro terminava. e o propósito seguinte era ler outro. Tive a possibilidade de ler todos os clássicos juvenis, de ler Júlio Verne em todas as suas obras, embrenhar-me na colecção imensamente rica dos livros de Emílio Salgari. Daí aos livros (proibidos para a minha idade foi um pequeno pulo e li toda a obra de Júlio Dinis e me perdi com a colação nada pequena de Camilo Castelo Branco.

Tive a sorte de ter tido uma avó maravilhosa que levava horas a contar-me histórias era eu um rapazinho. Eram dias e horas de volta da Ala dos Namorados, e de outros romances históricos. Já adulto percebi a riqueza extraordinária da sua memória quando percebi que ela me contava histórias que constavam de volumes grandotes e chegou a contar-me uma história interminável - nem podia ser de outro modo - de uma história em três volumes. Tinha eu os meus 18 anos quando toquei nesses livros de encadernados capa grossa acastanhados, e os comecei a ler. Cada página era um espanto, pois tudo o que ia lendo me tinha sido revelado muitos anos antes. Toda a história, três livros, com pormenores e tudo. Acho que muito do que sou enquanto leitor, enquanto interessado em ler, saí a ela. Quanto à memória, não podia me queixar, mas fui dando cabo dela com uma quantidade sucessiva de acidentes fruto de um estar no mundo em solidão, sem regras, e fazendo o que bem entendia.

Mais tarde apercebi-me da beleza do livro em si. E tornou-se um vício comprar, comprar sempre, livros novos. Levantava dinheiro para a semana mas logo por azar passava na porta de uma livraria e não resistia a entrar e parte expressiva do dinheiro que era suposto ter de durar uma semana ficava no livreiro. Depois vieram outras preocupações, as estantes e o espaço para livros que cada vez eram mais. A certa altura deu-se como que uma ruptura de assimilação, e comecei a ler menos. Mas continuava a comprar. 

E de verdade que não é preciso ter biblioteca para se ter conhecimento ou para se ser mais feliz. Existe gente que nem sabe ler e sabe muito fruto de uma vida mestre escola. Outros aprenderam na Universidade do Mundo, viajando, conhecendo novos países e povos diferentes. Quando regressaram traziam seguramente uns poucos de cursos superiores tirados na vida e no mundo.

Mantenho os meus livros ao pé de mim. Durmo ao lado deles, E passo grande parte do dia junto das minhas estantes. Não sei quantos livros tenho, nem me imagino a contar, nem os das estantes do meu anexo biblio-secretário-dormitório, e muito menos nos que andam espalhados na casa.

Os livros não trazem a felicidade, não são a garantia de conhecimento mas podem ajudar bastante, e podem ser ou não companheiros. Amigos. Tive a minha época com eles. Agora, como em tantas outras coisas, perdi esse entusiasmo, e mudando de vida vou levar comigo um punhado, seguramente daqueles que ninguém quer mas me ajudaram a ser irreverente, teimoso, lutador, defensor da verdade, dos mais fracos. Nem vão dar falta deles. São fortes e impetuosas obras que em cada momento ajudaram a catapultar no tempo. Foram demasiado longe quando escritas. Foram proibidas. Fizeram arder na fogueira o pensador cientista que ousou escrever coisas verdadeiras que os poderosos não aceitavam.

Quando olho esses livros penso como esses homens foram corajosos, como foi por existirem espíritos rebeldes, irreverentes e teimosos que a ciência avançou e o mundo é como o vemos.Uns perderam a vida, outros tiveram de retractar-se, outros de se esconder atrás de outros nomes ou publicando na hora da morte.

Servem-me de exemplo. Quando luto por alguma coisa penso nesses homens. E percebo o valor deles, e vejo que nunca morreram, que um pouco por todo o lado existem testemunhos e homenagens recordando sua dedicação à verdade.

Os livros podem ensinar-me a minha pequenez. Podem desmontar alguma vã e efémera vaidade de algum momento solto numa vida dura e difícil. Podem mostra-me que quanto mais leio menos sei. E mais pequeno é o meu conhecimento face a tudo aquilo que desconheço.

Sonhei toda a vida que um dia escreveria um livro. No declínio não será fácil encontrar engenho e forças para uma tal empreitada. Escrevo para mim. Escrevo o que penso, e na escrita encontro o caminho para lutar pela verdade, e por valores e princípios hoje simplesmente esquecidos. Não é importante ser escritor, como não é importante ser advogado, ou ter sido um brilhante operário na vida laboral. O que é importante é escrever, o que vem na alma e o que a liberdade quer. Melhor defendo um amigo com as armas de uma amizade à antiga, que sendo um fraco tribuno, e da minha vida profissional guardo a ideia que cumpri.

Vou continuar a escrever enquanto a vontade o determinar e me der ânimo colocar no papel virginal, meandros de arabescos que traduzem toda a amálgama de uma vida, de um mundo, de ser gente. Se Deus quiser...





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