24 abril 2016

ALDEIA DE PEDRA - (Pia do Urso, Fátima)


PIA DO URSO - FÁTIMA


Deambulando por aí, só, pulverizado por milhentos espíritos e sentimentos que se entrecruzam, descobri muito pertinho de Fátima, esta pequena povoação que virou turística, mas não de massas, entre pinheiros e eucaliptais, e depois de percorrer uma estrada serpenteada não muito convidativa.


Na minha solidão foi como que encontrar um chamariz num pequeno mundo que parecia tão escondido e desolado como eu. Ali tudo parecia virado do avesso, tornando sedutor sentir que entre pedras, e mais pedras, as casas são todas feitas de pedras como há muito se não fazem, ainda restariam amálgamas de tantas outras coisas velhas que o homem deveria ter orgulho em voltar a edificar.


Confesso que fiquei maravilhado percorrendo meia dúzia de ruelas, onde casas novas feitas de modo antigo emprestavam ao local um toque de mágica, como se num ataque de bebedeira o desgraçado, vítima de irresponsabilidades, atordoado pelos excessos imaginasse toldadas visões do tempo dos seu avós.


É que senti-me embriagado de espanto. Existia ali uma calmaria, uma serenidade, uma beleza natural de frondosas árvores e campo envolvendo o casario, que imaginei tratar-se de algo que se tem e onde se vai, mas, porventura, onde se não permanece no quotidiano.


Senti que tudo aquilo era como se fosse eu mesmo. Uma coisa esquecida, solitária, que todos podem ir ver, está por ali, eu também, e naquela expressão de belo, talvez pelo retorno que nos obriga a fazer ao passado que muitos nunca conheceram ou sequer imaginaram, acaba por possuir como que encanto impregnado de cousas que não existem, fantasmas, relíquias, saudades, tristezas e recordações.


Cada casa possuí o seu cunho, a sua individualidade, nada ali é igual, traduzindo também que a igualdade é algo muito difícel de encontrar, pois como nós, os homens, também nascemos logo diferentes uns dos outros, tivemos educações e crescimentos diferenciados, caminhámos por vias distintas até chegarmos à idade adulta, e depois disso cada qual, seguiu seu caminho, sendo o mais vulgar, o que obedece aos ditâmes de Cristo, "crescei e multiplicai-vos". Assim cresceu cada casinha. Umas mais singelas, outras mais altaneiras, umas mostrando pedra mas parecendo inspiradas no nosso tempo frente a outras que no mesmo material nos levam a tempos que há muito desapareceram.


Como tudo ali é diferente dos imóveis sem fim, que parecem atingir o céu, ou gaiolas sobrepostas constituindo mostras de arquitectura audaz, moderna e até provocante. O que se mostrs hoje, pululando nas aveinidas das nossas cidades é como que um desafio, o homem procurando chegar cada vez mais alto, ser mais forte, ganhar em beleza, em brilho. E, para que essas torres onde centenas ou milhares de pessoas se cruzam todos os dias sem se conhcer, sem se cumprimentar, sem um bom dia, não podemos descurar os enormes espaços que são cavados em profundidade. Tecnicamente são alicerces e são utilidades ocultas, como armazéns e garagens, onde já não existe, pois se não vê, a ostentação, o desafio às intempéries, a captação do interesse e dos olhares para algo que possa apelidar-se de arte. Tal como nos homens de hoje. Similar. Curioso.



De facto fez-me meditar tudo isso, a tristeza, a simplidade, a dureza, a resistência, a solidão, que pareciam envolver todas aquelas casinhas de pedra. Ali, tão perto da civilização, a um pulo da modernidade, parados no tempo. Hoje, dar uma volta pela Pia do Urso e tirar umas fotos pode ser uma incursão peculiar, curiosa, como se de repente surgisse do nada um conjunto de películas encontradas no baú do sótão lá de casa dos avós. E alegremente vamos fotografando, podemos filmar, e guardamos tudo nos cartões de memória, no computador, numa gaveta, depois de mostrar-mos aos amigos e familiares. 


Como admito apenas ter conseguido na minha incipiente vida fazer muitas vezes, mais ou menos bem, com persistência, e mesmo tentando ir além, perscrutar teimosamente no possível e no vedado ao conhecimento  (o que é normal dada a minha falta de conhecimentos académicos), ir a fundo, acreditei que o que me faltava como alicerce técnico-científico, não podia permitir a veleidade de me considerar um filósofo, isto é, diz quem sabe, um amigo do saber. E concretamente o meu saber é exactamente igual à característica dos bens na economia, que alguns consideram ciência, é escasso. Não sou erudito, não intelectual, não sou filósofo, e podia até nem ser nada. Mas sou, descobri isso de um modo parecido com um antigo que saiu de casa nu gritando "eureka". Lógico que nem imagino o que tal palavrão significa, mas que o homenzinho devia ser doido varrido não me restam dúvidas. E foi precisamente a pensar na figura do homem rua abaixo em pelota que percebi claramente no grupo de perigosos indivíduos me encaixava perfeitamente; eu afinal não era nada dessas coisas com Diplomas, certificados e títulos, não, sem dúvida, o que eu era e sou é PENSADOR.



Interessante. Canso-me imenso, e já descobri a causa, penso que me farto. Sou uma verdadeira formiguinha, mas sem inverno, pois não tenho época de descanso ou de usufruir do trabalho despendido, e penso, penso, penso. E volto a pensar. Isso aconteceu-me na Pia do Urso, quando olhava aquele casario e procurava razões racionais para o homem de hoje fazer coisas de ontem, quando o próprio homem, e em maior grau que a construção, tem sofrido mais metamorfoses ao longo dos tempos.


Meditei - penso que tem um significado parecido de pensar - e não coloca em perigo o meu novo ser pensante, e elaborei uma planificação a seguir para dar às minhas conclusões um conteúdo em nada diferente daquele que os revolucionários (no sentido de mudança e não de explosão) impuseram e vieram a alterar o rumo do mundo. Primeiro deveria confrontar todas e cada uma dessas casas de pedra comigo mesmo. E só depois de ter dado passos decisivos em tal matéria poderia minimizando os riscos, executar uma segunda fase de confronto ou similitude, ou o que quer que fosse, entre aquela descoberta de uma aldeia por defenir em bom rigor se é velha, é nova imitando coisa antiga, ou um embrulho de tudo isso para dificultar os estudos. Mas arranquei, como sempre, lançando nuvens de pó atrás dos sapatos,  com os pensamentos já encavalitados na cabeça.



Depois de muito pensar, coisa que eu creio é vedado a muitos humanos, cheguei à primeira conclusão vibrante que faz lei universal. Aquelas casas não foram ali colocadas para simplesmente se olhar, tirar fotos, ou contar aos compadres, aquelas casas, onde deduzo em algumas alturas do ano, ou fins de semanas e férias se encontram seus proprietários mais que uma exposição física - que também existe - são um mostruário, uma montra, dissimulada, pois nem todos conseguem discernir o nos pretendem dizer e ensinar, das mudanças operadas no ser humano. Aquelas casas mostram pedras, mas as pedras ali colocadas por homens explicam como os materiais foram substituídos. E a bem dizer, às casa de pedra corresponde um homem de pedra, e as torres coloridas, altas, brilhantes, coloridas, vaidosas, corresponde o homem de hoje. Aqui reside a grande lição da Pia do Urso. Vamos analisar em seguida:



O homem que construía aquelas casas em tempos esquecidos era um ser que se unia à terra, se realizava nela, e nela buscava o pão, ensinava os filhos, os via crescer apascentando animais ou cuidando da horta, comia o pão que a mulher tirava do forno depois de amassar a farinha comprada no moleiro, e se alimentavam do que a terra dava. Pouco possuíam, o gado quando havia, ficava na loja, piso térreo, assim aquecia a casa nos intermináveis invernos, cantavam nos campos, havia alegria e desgarradas nas descamisadas (tirar as cascas ou camisas ao milho), ao domingo iam à Igreja e descansavam. O homem era duro, era forte, era uma máquina de músculos lavrando a terra com a junta de bois ou com a mula, cavando as terras, cortando a lenha, e fazendo os trabalhos agrícolas de acordo com as épocas. Começava o dia ao nascer do sol e quando o sol caía já a família dormia de novo. Os problemas entre homens podiam resolver-se a pau, briga rija, que não impedia se uma desgraça acontecesse ao vizinho não fosse imediatamente socorrido e as querelas esquecidas. Havia uma são harmonia entre os elementos, havia o valor da palavra, honradez, humildade. A natureza, o homem e Deus harmonicamente envolviam  o homem, que na hora da morte, ao lado do padre, tinha a família e os vizinhos.



Ao contrário do homem que construía casas de pedra, o homem de hoje é o homem das torres, tal e qual, desconhece a terra, as diversas plantas, nunca montou uma mula,  nem apascentou um rebanho de cabras, mas conhece coisas inimagináveis para os nossos antepassados. Desde levar horas a mexer em aparelhos de comunicações, nada comunicando - hoje as pessoas não falam - mas vendo ilusões, brincando com bonecos, jogando com fantasias, ele está ligado aos centros comerciais, às compras, à posse, quer ter todo o mundo e mais alguma coisa dentro de casa. E o pai e a mãe, que deveriam juntos levar os filhos a ser gente, puxa cada um para seu lado, no trabalho, nos divertimentos, nos tempos livres, na corrida desenfreada de dias sempre iguais de corrida em corrida. Esperam o fim do mês para pagarem contas, estão empenhados a Bancos que ninguém sabe bem de quem são, desacreditaram na força dos valores espirituais, não valorizam a palavra, não conhecem o vizinho nem sentem absolutamente nada se lhe aconteceu alguma tragédia, levam a vida com subtilezas, essa é a parte oculta das torres, em que abaixo do pescoço é canela, vendem-se barato, apunhalam amigos e colegas para retirar dividendos, vivem num amontoado de leis que só alguns têm de cumprir, e violam regras, desconhecem a ética e a moral, é a lei da selva. A corrupção e o modo como vivem acaba calando e envergonhando os seres sérios. Como na Bolsa a seriedade não tem cotação, a lealdade é para cão, e o crime compensa. O homem de hoje é exactamente o homem das torres, não do arranha-céus, pois desconhecem e provocam cada dia o divino e ignoram seus mandamentos, mas por fora se cuidam, se banham, cheiram bem, vestem melhor, têm belos carros, estatuto social, vaidade q.b., e desprezam quem sofre, quem nada tem, e por detrás de todo esse invólucro, nem vale a pena retocar, fede, o que vem das caves, ali existe muito lixo, muita sujeira.




Por fim, fica a questão essencial que o meu pensamento buscou descortinar; qual a ligação entre aquelas casas feitas como noutros tempos, e eu, enquanto ser humano, enquanto pessoa. E percebi que não estava visitando algo para o mundo ir ver, mas um espelho para alguns homens se olharem;
vi naquele local ermo, entre os silêncios e a solidão, que também estou só, que mesmo que fale não me querem ouvir, e percebi que por ter tentado manter alguns valores hoje caídos em desuso, posso olhar cada manhã no espelho sem sentir vergonha, mas perdi amigos, perdi família, desapeguei-me do mundo de hoje. Vivo num tempo que necessariamente não pode ser o meu, ainda luto, sem que seja compreendido e respeitado, pela força da razão, não faço jogos dissimulados e nunca atraçoei um amigo. Ao contrário fiz inimigos defendendo pessoas. E como pareci aos olhos dos cobardes de hoje que não lutam de pau na mão, mas com vilania, sujeira, sem olhar a meios, fui muitas vezes atacado.
Mas como aquelas casas de pedra não mudei, teimosamente continuo a lutar, a procurar apoiar a minha solidão, encostando em valores esquecidos. Confesso que vivi, mas ainda permaneço, e espero a morte com serena tranquilidade, pois cada dia penso, por isso sou pensador, e por cada pecado, sou imperfeito, peço a Deus que me perdoe, e procuro levar uma vida sem atropelar ninguém.


Foi lá, na Pia do Urso que descobri o que sou verdadeiramente - um pensador - de resto, analisando tudo o que fiz e não fiz, nada tenho a enunciar que me distinga, excepto a teimosa fúria que o meu livre pensamento me impôs de lutar sempre pelo que acho justo. Pela verdade. E por mim.

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