07 fevereiro 2010

Fantasias marginais...

Enquanto uns amealham como a formiguinha e tudo guardam, desde a velha moeda de colecção, às notas novinhas que servem para a compra de quase tudo, outros indiferentes às vantagens ou desvantagens, ao interesse ou não, de um esforço, muitas vezes em vão, seguem tranquilos o caminho do consumo, derretendo o que ganham, adquirindo bens e serviços, ou simplesmente gozando, em cada momento, um grão de vida, de seguida, sem cessar, que o mundo um dia deixará de girar.
Outros, nos mesmos trilhos da existencia parecem nem dar-se que existe isso de acumular, tornando seu, em cada acto aumentando, carregando, espreitando dessa sequencia de fazeres, um deslumbramento futuro num dia com a aquisição do que era sonho, com a realização de uma desejável fantasia, ou simplesmente, gozando o simples crescimento da coisa, sem pensar, que de tanto juntar, um dia tudo se perderá, se não gastando.
Alguns existem que não sabem onde guardar os valores mais preciosos, com um medo sofrido de ver perder tudo de um momento para o outro. Não confiam na banca, nos seguros, no colchão, no soalho da casa, na cova no quintal, nem em si mesmos. Vivem inquietos, medrosos, sentindo que todo e qualquer momento é um perigo real, que a vida é efémera, que nada está a salvo, nem dos malfeitores, nem do mau olhado, nem das intempéries, nem do desconhecido. Nem dormem, e muitas vezes já se sentem roubados ainda antes de o ser.
Uns vivem de sonhos, outros de dinheiro, ou de honrarias, ou de poder, de vaidades, de coisas ou grandes ou mesmo pequenas, das que existem de verdade e de muitas que nem sequer se garante existir. Mas vive-se, pula-se ou corre-se, ou simplesmente se vão arrastando os agentes, passo lento, como se ao chegar de uns sobreviessse a desgraça, e a boaventurança fosse real na vinda de outros.
Quem nada tem para colocar em algum lugar, nem possui poiso seguro onde reter ou fazer render o que gostaria de ter, aparentemente deixa de ter entre mãos imensos problemas, para existir apenas. Vive só, alheio à coisa, independente de haveres, imúne à pressão da avidez, do sentido da posse, enfim, como se não fora gente.
Mas existem, poucos, meio loucos, afastados de uma vida que se tem como padrão, são olhados de soslaio, alvo de curioso interesse, como de de seres de outra galáctia se tratassem. Incompreendidos, vagueiam na solidão, esquecidos, são apenas mais qualquer coisa que por vezes transita, ou se cruza no caminho de tantos, mas que não conta, não faz, e por essas mesmas duas razões, nem sequer são. Existem.
Nas suas incompreensíveis existencias acumulam silencios, também envelhecem como os demais, mas alheados de uma realidade que ignoram, que afastaram, que repudiaram mesmo, continuam existindo, dentro de um conjunto de acessórios que mais ou menos o estar os obriga, roupas que parecem em litigio com o tempo e as ideias de moda, uma espécie de calçado, multicolor e com imensas entradas de ar, que no mais rigoroso dos invernos nos parecem catapultar para um sol de verão.
A sabedoria da técnica que tudo tem de qualificar, chama-os de marginais, ou de sem abrigo, sem tecto, uma espécie de ratos de cano de esgoto que sobrevivem entre a abundancia e o movimento imparável da modernidade e da civilização. Em livros que a muito poucos interessam, se podem ver inúmeras linhas repletas de palavras e mais palavras, que, cheias de boas vontades, tentam explicar, e convencer, que existe gente assim, que se trata, em boa verdade, mesmo que tal para muitos seja pouco crível, de seres humanos genuínos, de gente que tem coração, que pensa, que fala, e que, mesmo não tendo muito acessíveis os lugares mais indicados para o efeito, também se acham obrigados, por terem corpos iguais aos dos outros, a certos rituais de necessidades a que os indivíduos denominados normais, também se sujeitam, no conforto da discrição.
Não guardam nada, estes seres da solidão, que vagueiam mais ou menos ocultos nas ruas das nossas cidades. É pouco crível que possuam contas bancárias, se livrando, deste modo, dos sobressaltos que tanta gente boa não deixou de ter quando os arautos da desgraça gritavam que os bancos iriam falir e toda a gente estava condenada a uma triste e profunda pobreza. Não possuem cofres atrás de quadros imitando obras de consagrados pintores, escondidos, nem dessas caixas móveis, de lata ou ferro, com rodinhas cheias de letras, que depois de mil voltas, coincidindo com a selecção da praxe, abrem, mostrando doiradinhas moedas e muitos brilhantes. Não têm carteiras polvilhadas com cartões coloridos de crédito ou débito, e divisões para separar as notas e guardar moedas. Nada têm. Nada guardam. Não possuem algo que necessite ser guardado, nem anseiam por possuir um local onde arrecadar tesouros. E vivem, acordam todos os dias, olham, sentem, andam por aí. Sem guarda, e sem medo da falta dela. Não guardam.
Muitos deles, creio mesmo que todos, e digo isto sem que busque algum merecimento académico com estas conjecturas, ou alguma notoriedade, nem mesmo me atrevendo a pensar em rabiscar esta tese em algum manual que ninguén vai ler, guardam, e creio que será a única coisa que de valioso possuem ainda, sonhos, coisas inimagináveis, que existem ou não, com ou sem cores, com ou sem cheiro, com ou sem calor, ou frio, ou brilho, coisas que existem dentro de cada um, que entraram e nunca mais saíram, que se anicharam para sempre dentro dessa existência que julgada perdida de tudo, guarda bem no interior de cada um, esse filão desconhecido que é força em cada manhã, que é vida em cada acordar.
Esses sonhos, os guardados há imenso tempo, os mais recentes, os desta noite, e da outra, e mesmo um que chegou numa tarde soalheira poucos dias atrés, permanecem em caixinhas transparentes, onde a luz, que sempre chega com a respiração em cada momento, faz projectar as cores do arco íris, dando vida a um conjunto de fantasias marginais que garantem a permanencia nessa marginalidade, o afastamento do que parece certo, a fuga das práticas que juramos fazer nossas e das regras a obedecer.
Esses sonhos estão entre cores na dita caixa de luz, que imaginamos, mas só eles, os que vivem escondidos na mais repleta solidão, num mundo que parece nem sequer existir, sentem, projectando estrelinha de vida, dentro de cada um. Caixinhas de luz e de cores. De vida...


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